segunda-feira, 16 de abril de 2012

Sacrifício às divindades do capital


Por Raquel Moysés – jornalista

Na guerra das bombas que explodem corpos assim como na guerra da economia, que explode vidas candidamente, os administradores das tragédias usam siglas inexplicáveis para justificar os motivos de tanto sacrifício. Enquanto ao povo grego é imposta a falência e a miséria para “salvar” a nação, o novo governo técnico da Itália - que deve governar por período limitado, até as novas eleições -, aprova decretos e pacotes severos de medidas para “livrar” o Bel Paese da crise econômica. Na Itália como na Grécia, e onde mais haja preço alto a pagar, quem dá os mortos, como nas guerras, são os trabalhadores e seus filhos. “Na luta do bem contra o mal, é sempre o povo quem conta os mortos”, escreve Eduardo Galeano.

O início de 2012 no país de Dante Alighieri e Michelangelo foi assinalado pelo despreparo para enfrentar o intenso frio que isolou comunidades e agravou o problema da energia. Mas a população não sentiu apenas o peso do rígido inverno, que não poupou a mediterrânea Itália, fazendo gente do povo até duvidar das atemorizantes previsões sobre o aquecimento global. No contexto de novas pressões fiscais, demissões e aumento do desemprego, um drama bem menos divulgado pela mídia também golpeia a sociedade: o suicídio de trabalhadores e pequenos empresários, que escolhem a morte à perda do trabalho e à bancarrota. Na Itália já se contam às dezenas os que sucumbiram ao desespero, afundados na lama de uma crise que não nasceu da noite para o dia, tal qual meteoro catapultado do espaço sideral, como querem fazer crer os “metafísicos das finanças”, cujas vozes são apregoadas pelos meios de comunicação públicos e privados.

Economista que sustenta o mercado, as liberalizações e o rigor das contas públicas, Mario Monti (professor e presidente da Bocconi, prestigiosa universidade privada italiana) substituiu, sem eleições, o descarado Silvio Berlusconi. Desde então, ele, seus ministros e assessores usam, para explicar as medidas de austeridade, uma terminologia que Beppe Grillo (ator, ativista político e um dos blogueiros mais ‘visitados’ no mundo virtual) chama de “metáfisica da economia”, ou “metafisica das finanças”. Enquanto proliferam palavras sigladas na arte de produzir ilusionismo, providências inflexíveis afligem os empregados - com congelamento salarial e aumento dos já pesados impostos, só para citar duas - e desesperam os que nem um trabalho tinham quando a crise foi finalmente admitida por governantes que até um dia antes asseguravam a solidez da economia italiana. Atingidos em cheio são os trabalhadores jovens e velhos, os recém demitidos, a juventude desempregada (que nunca conseguiu um trabalho de verdade e vive de fugazes atividades precárias) e, dulcis in fundo, os aposentados.

O presidente da república, Giorgio Napolitano, em seu discurso para saudar a população no início do ano, reprisou a necessidade de enfrentar a crise aliando rigor financeiro e desenvolvimento, sempre com “espírito de sacrifício” e “ímpeto criativo”. Aparentando serenidade, Napolitano não poupou as arrogâncias nacionais do velho continente, lembrando ser indispensável um esforço conjunto de todos os países europeus para a recuperação da economia. Reiteirou, contudo, que a confiança não deve ser obscurecida pelo pessimismo e que nenhuma classe social pode se eximir do preço a pagar para o saneamento das contas públicas.

Napolitano denunciou o parasitismo, a corrupção e outra grave “patologia italiana”: a evasão fiscal, estimada em cerca de 180 bilhões de euros, em 2009, segundo dados de Tax Researh London, a pedido do grupo parlamentar europeu Alleanza Progressista dei Socialisti e dei Democratici. A recuperação desse valor evadido garantiria, nos cálculos de economistas, zerar a dívida pública italiana em pouco mais de 15 anos.

Decisões tomadas neste início de março para conter os chamados “salários de ouro” - de até 600 mil euros por ano, no caso de alguns altos dirigentes - fixam um teto de 300 mil euros anuais para o salário de administratores públicos, mas soam risíveis diante da situação dos trabalhadores empobrecidos. Além de os italianos receberem salários entre os mais rebaixados da zona do euro, neste início do ano já dispara o alarme do aumento do desemprego no país, que alcançou em janeiro, segundo o Istat (Istituto Nazionale di Statistica) o índice geral de 9,2% e o ápice de 31,1% entre os jovens.

Mas não é do patrimônio dos endinheirados que sai a obrigatória cota de privações que tanto Monti como Napolitano anunciam como única forma de “salvezza” do país. Enquanto a criação de um imposto para taxar as grandes fortunas aparece apenas em discursos políticos, mais uma vez, para a salvação da economia dos ricos, impõe-se aos pobres e remediados o sacrifício de suas vidas às divindades do capital. É dos pobres, que têm pouco, mas são muitos, que se exige imolação para o pagamento de uma crise que nasce das entranhas do sistema capitalista.


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